Autismo e a Carreira Policial

Em entrevista ao SINPOL, Policial Civil Rodrigo Lacerda fala sobre seus desafios.

Como foi a descoberta do autismo e como você lidou com isso?

“Eu passei por um perrengue danado na vida acadêmica. Desde pequeno, eu sofria com a questão do aprendizado e não conseguia me socializar com as outras crianças na sala de aula. Era muito agitado, sempre fazia bagunça e tirava notas baixas. Os professores reclamavam de mim, minha mãe não tinha paciência e meus pais sempre me castigavam. Até que meu pai faleceu e eu parei de estudar praticamente. A escola era uma tortura e eu tinha um terror de ter que voltar para a sala de aula. Mas a vida não é fácil, né? Com 18 anos, eu precisava aprender, pois fui para o exército. Lá, engajado e ganhando um bom dinheiro, eu não me preocupava muito com estudos. Até que um dia, quando saí do exército, me vi desempregado e sem estudo. Tentei fazer concurso da PM, mas não tinha o segundo grau completo e o meu terror de voltar para a sala de aula aumentou ainda mais.

Mas aí, uma pessoa que trabalhava na escola pública perto da minha casa me indicou o EJA, o ensino de jovens e adultos. Fiquei aliviado, pois poderia fazer a prova em um dia e tirar o segundo grau. E assim foi, eu fiz a prova no final do ano e consegui passar. Logo depois, veio o concurso do bombeiro e eu fiz também. Fiquei dois anos fazendo o curso de bombeiro e ao final, saí com curso superior! Foi engraçado, né? Dois anos antes eu tinha sétima e oitava séries e, depois, eu já tinha um curso superior!

Continuei estudando para o Enem e, por incrível que pareça, comecei a tirar notas altas, principalmente por causa de uma redação que eu tinha decorado algumas palavras e usava sempre. Mas aí, na Polícia Civil, as coisas ficaram mais complicadas. Eu não conseguia entender nada na sala de aula e fiquei entre os últimos da minha turma no curso de formação. Quase que eu não era nomeado, mas consegui entrar na reserva.

Mas aí, comecei a sentir mal por causa disso e decidi buscar ajuda. Fiz uma bateria de exames com o neuropsicólogo e descobri que sou autista. Fiquei muito surpreso com isso, achava que autista era outra coisa, outro tipo de pessoa. Mas agora, com o tratamento e acompanhamento com o psiquiatra e a neurologista, as coisas melhoraram. A vida é difícil, mas com um pouquinho de ajuda e esforço, tudo pode melhorar.”

Quais são os maiores desafios que você enfrenta diariamente como policial autista?

“Um dos meus maiores desafios é entender a mim mesmo, compreender o que se passa comigo e me aceitar. Não é fácil, e às vezes sinto dificuldade em me aceitar completamente. Antes, eu era mais extrovertido, mas agora sou um pouco mais contido em algumas coisas, mas ainda sou muito direto e honesto. Infelizmente, isso pode ofender algumas pessoas, mesmo quando não é minha intenção. E não entendo por que as pessoas se ofendem tão facilmente. Sinto que estou apenas falando o que me vem à mente no momento, sem filtros.

No entanto, essa forma de me expressar tem começado a me incomodar, pois tenho sido muito criticado por ser tão direto e, às vezes, por coisas tão simples, como deixar meu telefone tocar. Eu entendo que nem todos podem lidar com isso, mas é difícil para mim mudar quem eu sou. Meu cérebro é assim, é uma condição com a qual nasci e tenho que encontrar a felicidade dentro de mim mesmo.”

O que você acha que a sociedade pode fazer para apoiar pessoas com autismo?

“Pensando na coletividade, acho que alguns pontos devem ser exaltados:

  1. Educar-se sobre o autismo e suas características: é importante que a sociedade entenda que o autismo é uma condição neurológica e que as pessoas com autismo podem apresentar uma ampla variedade de comportamentos e habilidades.
  2. Fornecer ambientes e recursos acessíveis: pessoas com autismo podem ter sensibilidades sensoriais diferentes e pode ser necessário fornecer ambientes mais silenciosos ou iluminação adequada. Também é importante fornecer recursos de comunicação que atendam às necessidades individuais, como sistemas de comunicação aumentativa e alternativa.
  3. Incluir pessoas com autismo em atividades e oportunidades: a inclusão social é importante para pessoas com autismo, e a sociedade pode fazer esforços para incluir pessoas com autismo em atividades e oportunidades, como emprego, esportes, artes e educação.
  4. Acomodar necessidades individuais no local de trabalho: os empregadores podem fornecer acomodações para pessoas com autismo, como horários de trabalho flexíveis, treinamento adequado e ajustes no ambiente de trabalho.
  5. Promover o respeito e a aceitação: a sociedade pode trabalhar para promover uma cultura de respeito e aceitação para todas as pessoas, incluindo aquelas com autismo. Isso pode incluir campanhas de conscientização, educação pública e eventos comunitários inclusivos.”

Qual é a importância do mês de conscientização do autismo?

“O mês de conscientização do autismo é de extrema importância, pois é uma oportunidade para a sociedade aprender mais sobre a condição e como apoiar pessoas autistas. É um momento para aumentar a conscientização, acabar com estigmas e preconceitos e promover a inclusão.

É um mês para celebrar a neurodiversidade e compreender que todos nós temos habilidades e desafios únicos. É uma chance para quebrar barreiras e construir pontes de compreensão e empatia. É uma oportunidade para educar a sociedade sobre a importância de aceitar e apoiar pessoas autistas em todos os aspectos da vida.

O mês de conscientização do autismo é uma chamada à ação para a sociedade em geral. É uma chance para todos nós fazermos nossa parte para tornar o mundo um lugar melhor e mais inclusivo para todos, independentemente de nossas diferenças.”

Você tem alguma mensagem para pessoas com autismo que gostariam de seguir a carreira policial?

“Se você tem autismo e sonha em ser um policial civil, lembre-se que sua jornada pode ter obstáculos, mas é a sua resiliência e determinação que definirão seu sucesso. Acredite em si mesmo e siga em frente, porque você tem a capacidade de alcançar grandes realizações. Seja fiel aos seus sonhos e lute por eles, pois a sua força de vontade é o seu maior aliado.”

Você sente que há uma falta de compreensão ou estigma associado ao autismo na polícia? Como você acha que isso pode ser abordado?

“A falta de conhecimento sobre o autismo é uma questão que afeta muitas pessoas, inclusive eu. Eu já estive nessa posição, sem saber como lidar com pessoas autistas ou como me comunicar com elas de forma adequada. Eu tinha uma visão distorcida e limitada, que me impedia de enxergar a beleza e a riqueza de experiências que o autismo pode trazer.

No entanto, eu sabia que algo era diferente em mim. Eu precisava trabalhar mais do que os outros para alcançar meus objetivos e, às vezes, meus comportamentos eram vistos como estranhos ou inadequados pela sociedade. Eu me sentia sozinho, mesmo rodeado de pessoas. Mas aprendi que isso não é uma fraqueza, e sim uma força.

Infelizmente, a falta de conhecimento sobre o autismo não é apenas um problema da polícia, mas sim da sociedade como um todo. É preciso buscar informações e aprender mais sobre o autismo para que possamos ser mais inclusivos e acolhedores com as pessoas autistas. A mudança começa em cada um de nós.

Como dizia Sêneca, “a felicidade é uma boa e reta disposição da alma, que se faz acompanhar pela virtude.” É hora de colocar em prática essa virtude e buscar o conhecimento necessário para incluir e apoiar as pessoas com autismo, para que elas possam se desenvolver plenamente e alcançar seus sonhos. Juntos, podemos fazer a diferença.”

Como vc acha que o Sindicato dos Policias Civis poderia contribuir com o Policial autista?

“Existem várias maneiras pelas quais o Sindicato dos Policiais Civis poderia contribuir para ajudar os policiais autistas, por exemplo:

  1. Sensibilização e conscientização: O Sindicato poderia criar programas de treinamento e sensibilização para aumentar a conscientização sobre o autismo e a necessidade de acomodações para pessoas com autismo no local de trabalho. Isso poderia ajudar a quebrar o estigma associado ao autismo e ajudar os colegas de trabalho a compreender melhor as necessidades do policial autista.
  2. Acomodações no local de trabalho: O Sindicato poderia trabalhar com a administração da polícia para garantir que acomodações adequadas estejam disponíveis para os policiais autistas no local de trabalho. Isso poderia incluir a modificação do ambiente de trabalho para reduzir o ruído e a luz excessiva, acomodações para comunicação e outras adaptações para ajudar os policiais autistas a realizar seu trabalho com eficiência.
  3. Políticas de apoio: O Sindicato poderia trabalhar com as autoridades policiais para desenvolver políticas de apoio que garantam que os policiais autistas sejam tratados com justiça e respeito. Isso poderia incluir políticas que abordem o bullying no local de trabalho e promovam a inclusão de policiais autistas em todos os aspectos da vida policial.
  4. Aconselhamento e apoio: O Sindicato poderia fornecer aconselhamento e apoio emocional para policiais autistas e suas famílias. Isso poderia incluir serviços de aconselhamento para ajudar os policiais autistas a lidar com o estresse e as dificuldades no trabalho e serviços de apoio para famílias que precisam de ajuda para entender e lidar com o autismo.

Também acho que o Sindicato dos Policiais Civis pode contribuir significativamente com a inclusão e apoio aos policiais autistas. Uma das formas de fazer isso é promovendo a conscientização e o treinamento para todos os membros do sindicato sobre o autismo, suas características e como lidar com pessoas autistas.

Além disso, o sindicato pode buscar parcerias com organizações e profissionais especializados em autismo, para fornecer recursos e orientações para os policiais autistas e suas famílias. Também é importante que o sindicato esteja ciente das necessidades individuais de cada policial autista, para oferecer suporte personalizado e adaptado às suas necessidades.

O sindicato também pode trabalhar em conjunto com a instituição policial e outras entidades governamentais, para implementar políticas e práticas que promovam a inclusão e o bem-estar dos policiais autistas. Por fim, é fundamental que o sindicato dê voz aos policiais autistas e os represente em questões relacionadas aos seus direitos e interesses, garantindo que eles tenham as mesmas oportunidades e condições de trabalho que os demais policiais.”

Obrigado, Rodrigo Lacerda, pela sua disponibilidade em compartilhar a sua experiência conosco. A sua história é inspiradora e pode ajudar muitas pessoas a enfrentarem os seus próprios desafios. A sua coragem em buscar ajuda e se dedicar a entender a sua condição é um exemplo para todos nós. Desejamos todo o sucesso na sua carreira e na sua vida pessoal. 

COMPARTILHE EM SUA REDE SOCIAL:
Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
error: Recurso Desativado!