quinta-feira, abril 18, 2024

A mortalha da compaixão

Com quase 17 anos de serviços prestados em três regionais da Polícia Técnico-Científica do Estado de Goiás, me deparei inúmeras vezes com o seguinte questionamento, na realidade mais uma afirmação do que necessariamente uma pergunta: “Você, depois de tanto tempo, já deve ter visto tanta coisa, que já não sente mais nada né?” Foram tantas mortes, tantas mães, pais, tantos filhos(as), esposos(as), irmãos (ãs). A grande maioria estranhos. De repente parece que os gritos já não eram tão altos, e o choro quase não se ouvia mais, e o vazio tomou conta da alma, o véu se rasgou.

E não havia mais compaixão. Apenas a realidade fria e inexoravelmente dura como aço que te congela o espírito e te faz acordar e deitar como se sua vida fosse um filme no qual você atua a distância de forma autômata e robótica. Eu de fato não queria mais sentir.

Quando se permite, seja por que motivo for, e, via de regra, são tão pequenos, que o abismo da insensibilidade tome conta de sua alma, se está a um passo de cair nele. E quando se cai…

O trabalho policial é extremamente gratificante, mas também pode te levar a exaustão, ao esgotamento, à frustração por sermos tão limitados, tão humanos. E quando a esses fatores se unem questões de ordem pessoal, o abismo fica mais próximo. 

O mês de setembro é dedicado à prevenção do suicídio, por meio de uma campanha de conscientização acerca de sua realidade entre nós. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o 8º país com maior número de suicídios. Em Goiás ocupamos a honrosa 4ª colocação. Na circunscrição formada por 33 municípios atendidos pelo IML de Goiânia, de 1º de janeiro até a presente data, somam-se 133 ocorrências de suicídio atendidas. 

O suicídio sempre foi considerado um tema delicado, por ser encarado como uma atitude covarde. No meio policial não é diferente, é um fato grave e de difícil abordagem.

Entre os policiais, houve um gradativo aumento no número de suicídios  que, em sua grande maioria, poderiam ter sido evitados. Os casos em que a própria pessoa procura por auxílio são raros. Em sua grande maioria a pessoa emite “sinais”, com seu comportamento, atitudes, palavras. 

A SSP-GO, por meio do NIABs, oferece aos policias civis e seus familiares tratamento e acompanhamento psicológico com profissionais capacitados. Eles atestam a dificuldade de procura por livre e espontânea vontade devido ao preconceito e à discriminação que norteiam o assunto. 

A nós, colegas de trabalho, familiares, amigos, cabe a percepção dos sintomas, o apoio, o ouvir, o aconselhar, a quebra desses paradigmas, a humanização do assunto, pois, trata-se de um problema que pode nos afetar a qualquer momento, tendo em vista vivermos uma carga emocional permeada pela violência, pela morte, pela dor alheia. 

Dor que em algum momento me pegou de sobressalto, devagar, e de repente minha vida passava pelos meus olhos, enquanto eu me lançava no abismo de minhas emoções. O retorno foi difícil e lento. Doloroso. Mas com ajuda profissional, de familiares e amigos é possível vencer o abismo.

Hoje, prefiro o peso da mortalha da compaixão, que mostra a cada instante minha humanidade e todas as suas consequências, do que a leveza do véu da insensibilidade que traz a ilusão de que não se envolver nos torna mais fortes. Somos mais fortes quando somos humanos, vivemos, sentimos e choramos por humanos sermos.

Maria do Rosário Ribeiro Rosa Magalhães
Auxiliar de Autópsia de Classe Especial

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